domingo, 8 de setembro de 2013

Cruel

´Cruel´  é a peça que o Reynaldo Gianechini estava fazendo quando foi diagnosticado com câncer, uns dois anos atrás:


Essa é uma imagem da web. Não consegui pegar o programa, havia poucos disponíveis...

E apesar de ser um texto do August Strindberg, com direção de Elias Andreato, sem dúvida a platéia estava lá era para ver o ´Giane´.  Quando cheguei à bilheteria para pegar o ingresso que havia comprado pela internet, três meninas de uns vinte anos de idade que estavam na minha frente perguntaram ao bilheteiro se depois daria para tirar fotos com o ´Giane´,  e ficaram excitadíssimas quando ele respondeu que sim...  e isso, sem dúvida, se reflete por toda a platéia.

Eu costumo registrar o clima que percebo na platéia porque acho isso importante, faz parte da magia do teatro. Uma platéia concentrada, ou ao contrário, dispersa, pode modificar o desempenho dos atores. Afinal, é teatro, estamos todos ali, ao vivo, e isso faz toda a diferença. Eu tenho por hábito reclamar muito de quem atrapalha o espetáculo, com celulares ou com conversas paralelas. Claro que não imagino que todos devem ficar como múmias assistindo o que acontece no palco - as pessoas riem, se surpreendem, se incomodam e ficam trocando de posição nos assentos, isso é normal. Mas ver o que acontece quando há atores ´globais´,  especialmente um galã do porte do Gianecchini, é algo que me deixa abismado. Aquele monte de mulheres que estão ali somente por causa dele devem ter saído decepcionadas, pois afinal de contas, os personagens se mantém vestidos dos pés à cabeça o tempo todo, com roupas de época, nada sexy para os padrões atuais.

Como eu acabei enveredando pelo tema ´Gianecchini´, vou dizer logo o que achei: como quase todo mundo, tenho uma simpatia pela ´persona pública´ dele. Sempre me pareceu um cara legal, equilibrado, apesar de todo o sucesso e todo o assédio. E claro, por saber de seu problema grave de saúde, é normal que as pessoas sintam uma certa compaixão, uma boa vontade maior com quem passou por essa situação.  Só que nada disso iria fazer com que o desempenho dele como ator pudesse melhorar, se ele fosse um canastrão - e não é. Posso dizer que ele foi muito bem - ótimo mesmo. O personagem dele, ´Gustavo´,  é o principal da trama, é quem leva ao desfecho trágico do drama, é o senhor dos acontecimentos, o único que tem consciência o tempo todo do caminho a seguir. E é um homem muito racional, com um grande poder de argumentação, ao mesmo tempo que é sensível e  ainda profundamente apaixonado pela sua ex-mulher, Tekla ( Maria Manoella ). Ou seja, tem muito o que passar pra platéia, é um personagem complexo, cheio de nuances, e para comunicar isso tudo não se é com bíceps ou tórax expostos, mas sim com pequenos gestos e entonações. E foi exatamente dessa maneira que o Gianecchini deu conta do recado muito bem, mostrando que não é um físico atraente às mulheres que justifica a sua presença nos palcos. Para terminar esse assunto, quando ele entrou em cena ouviu-se suspiros na platéia, e até um assovio. As duas mulheres que estavam ao meu lado, aliás, daquelas com cara de solteironas, não paravam de cochichar sobre ele, assim como outras que estavam na fileira de trás. E da mesma maneira em que eu saí satisfeito do teatro, acredito que elas devam ter ficado decepcionadas, pelos aplausos burocráticos que deram.  Ou seja, quem foi ao Teatro Faap para ver o Gianecchini exibir seus dotes físicos, perdeu a noite. Quem foi para ver uma boa peça de teatro, saiu satisfeito.

Enfim, finalizados os temas ´comportamento da platéia / Gianecchini´, tem mais coisa para se falar. Essa peça do Strindberg, o mesmo autor de ´Senhoria Júlia´,  é um texto muito denso, cheio de nuances, onde até o desfecho final nada é bem o que aparenta. Basicamente o que é narrado é a vingança do ex-marido da escritora Tekla ( Maria Manoella ), chamado Gustavo ( Reynaldo Gianecchini ). Ele se aproxima do atual marido, o pintor e escultor Adolfo ( Erik Marmo ), apoiando-o em um momento de fraqueza e de doença. E começa a tramar contra o próprio Adolfo sem que ele perceba, colocando dúvidas em sua cabeça quanto à fidelidade de Tekla. Gustavo então faz com que no momento em que se encontra com Tekla, Adolfo fique em outro cômodo, ouvindo toda a conversa, sem que Tekla saiba. E aí, o ciúme de Adolfo, ao ouvir a conversa de Tekla e Gustavo, leva à tragédia do desfecho. Mas o que importa mesmo não é o final, mas como se chega a ele. As palavras de Gustavo são sempre precisas, independente de para que lado ele está levando a conversa: absolutamente generoso e ´insinceramente´ interessado em ajudar Adolfo no início, depois ferino e mordaz ou carinhoso e sedutor com Tekla, que não é uma mulher submissa ou um simples par romântico, mas sim uma mulher sedutora, decidida e com inteligência acima da média. Suas falas também são sempre cortantes, ela domina o atual marido, o pintor Adolfo. Ou seja, os dois principais personagens, Tekla e Gustavo, são verdadeiros esgrimistas com as palavras, com frases que dizem muito mais do que o simples enunciado. Principalmente nos diálogos entre Gustavo e Tekla, há sempre um nível muito grande de tensão no ar. E tudo isso vem com três atores que desempenham muito bem seu papel. O personagem do Erik Marmo não tem essa característica presente nos outros dois de ser alguém tão arguto, tão forte em suas palavras. Ao contrário, é um homem alquebrado, fragilizado por uma doença física e por uma submissão à mulher, que com sua carreira de escritora ofusca o seu brilho de artista. E isso é transmitido com perfeição pelo ator, que faz seu papel de modo bastante satisfatório.

Enfim, ´Cruel´ é uma peça que tem um forte conteúdo psicológico, o que Gustavo faz é uma verdadeira tortura com os demais personagens. A encenação toda é baseada na força das palavras, não há grandes gestos, grandes movimentações físicas. Os figurinos, o cenário, tudo é em tom menor, nada tem tanta importância quanto o texto. Os figurinos são ok, terno e fraque para os  homens, e um vestido longo para a Maria Manoella - roupas de época, bonitas, adequadas. O cenário é basicamente feito de três paredes com grandes janelas, por onde em alguns momentos se percebe através da semitransparência dos ´vidros´ os vultos dos personagens entrando ou saindo de cena, mais uma poltrona, uma cadeira, um pequeno aparador com espelho. E a iluminação é importante nessa peça, marcando as cenas, dando a condição para as silhuetas em contra-luz... agora, quanto à trilha sonora, lembro que de início há alguma música clássica dando o clima, mas depois, sinceramente, não sei se porque fiquei totalmente ligado no texto, mas não lembro de mais inserções musicais. 

Quanto ao espaço físico do teatro, já fiz alguns comentários, inclusive sobre o alto preço do estacionamento, quando estive no Teatro Faap no início do ano para assistir ´Quase Normal´.



Cruel 
Com Reynaldo Gianecchini, Maria Manoella e Erik Marmo
Direção de Elias Andreato
Texto de August Strindberg
Teatro Faap, SP, até 09/set/13


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