Entredentes, no Teatro Anchieta – Sesc Consolação
O Teatro Anchieta é o mesmo de ´Ah, a Humanidade... ´ velhinho, mas
confortável. Dessa vez fiquei em uma das últimas poltronas, mas mesmo assim
tinha uma boa visão do palco. Quem estava ainda mais para o fundo era a Elza
Soares, que inclusive foi homenageada ao final da peça.
Havia duas coisas que me despertaram o interesse nessa montagem: assistir ao trabalho do Ney Latorraca,
que eu só tinha visto em cena no ´ O Mistério de Irma Vap´, acho que mais de
quinze anos atrás, e também ver uma obra do
Gerald Thomas, que eu nunca havia assistido. Sobre o Ney, sem dúvida é um
grande ator, conhecidíssimo do público por suas atuações em novelas e
minisséries. Já o Gerald Thomas é uma figura mais enigmática. Eu simpatizo com
a ´persona´ pública dele, gosto do jeito
como ele se expressa nas entrevistas, a visão de um cidadão do mundo, mas
extremamente conectado ao Brasil. E sei que as peças dele não são fáceis...
E realmente, é difícil por exemplo dizer qual o ´enredo´
da peça. O cenário é um painel ao
fundo, onde há uma projeção gigante de uma vagina em preto e branco. De início temos os dois atores, Ney Latorraca
e Edi Botelho, vestidos de astronautas,
e fazem uma coreografia como se estivessem em um lugar com baixa
gravidade. Depois lançam confetes para cima, retiram os seus capacetes, e
começa o diálogo entre os dois, cujos nomes dos personagens eram respectivamente ´Ney´ e ´Didi´. O assunto? Sei lá, a relação entre os dois, as
manias, as histórias em comum, quase como se fossem um casal. Quase ia esquecendo: assim que tira o capacete, o Ney ( personagem ou ator?) canta ´Chão de Estrelas´, de um jeito até muito bonito.
Depois ambos retiram as roupas de astronautas e ao figurino
que estava por debaixo, que são roupas comuns,
são acrescentados um quipá ao Ney, e um keffiyeh ao Didi. Para essa entrada dos objetos em cena dois
contra-regras adentram ao palco, e tanto na entrada quanto na saída de cena
eles vão executando uma certa coreografia. Isso se repete em todas as entradas
deles, quando vão levar e retirar outros objetos de cena, como as vassouras que
são utilizadas para retirar os confetes que estavam no chão, e mais tarde essas vassouras se tornam também espadas.
Mas como ia falando, quando os dois se caracterizam como
árabe e judeu a projeção ao fundo é apagada, e aparece uma tela no centro do
palco com um muro moderno, todo pixado. A
partir daí entendemos que estão em frente ao Muro das Lamentações, pelas referências religiosas da conversa entre
os dois. E aparecem alusões ao que me parece serem obsessões do diretor,
pelo que já vi em entrevistas dele: o Holocausto, o atentado de 11 de
setembro...
Para mim é difícil estabelecer uma ordem cronológica de toda
a encenação, mas se não me engano depois que o quipá e o keffiyeh são retirados, a conversa entre os
personagens masculinos passa a tratar de referências ao Brasil, e é aí que a
atriz portuguesa Maria de Lima ( personagem: Maria, é claro! ) entra
em cena. Magra, cambaleante, de vestido vermelho, se não fosse pelo sotaque não
seria possível dizer que é portuguesa, já que não tem o biótipo que associamos
a eles. E ela entra com muita força em cena, falando muito sobre o Brasil,
dizendo alguns elogios e algumas verdades inconvenientes. O gestual dela é muito mais forte, muito mais
agressivo do que dos outros atores.
Depois ela sai de cena, retornando no final da peça. Mas basicamente não
há interação dela com os outros atores, mais é um monólogo dentro da peça, como
se ela tecesse comentários sobre o que os outros disseram.
E acho que a palavra-chave desse espetáculo é
´comentários´. O que a gente tem em cena
é um grande texto com vários e vários comentários do autor, sobre a situação do
Brasil, a situação global, questões sexuais, obsessões, críticas, Chico Xavier, Wittgenstein, a situação da Síria, da Ucrânia... São quase três horas de espetáculo sem intervalo,
e a partir do momento em que os capacetes de astronauta são retirados
praticamente não há silêncio, mas sempre uma verborragia contínua. Acho que a verborragia só é quebrada por alguns momentos quando algumas palavras são repetidas, ´it´s amazing, it´s amazing, it´s amazing´.... Aliás, em alguns momentos parecia haver uma certa alienação do Ney, o que me lembrava o personagem da TV Pirata, o Barbosa.
Ao sair do teatro
fiquei pensando no sentido de tudo o que eu acabei de ver, e
principalmente, de ouvir. Difícil estabelecer um julgamento sobre algo tão fora
do habitual, mas que por isso mesmo, foi interessante de se assistir. O tempo
todo eu estive ligado no que acontecia em cena, e tenho a impressão de que toda
a plateia também. Aliás, sobre a plateia, de vez em quando aparecia um riso
solto. Ou sou muito burro e não percebia do que aquela pessoa estava rindo, ou
o tal estava rindo para dizer a si mesmo
´como sou inteligente, percebo coisas nas entrelinhas que só eu vejo´....
Pra terminar, um comentário sobre o que aconteceu ainda
antes do início da peça: ouvimos uma voz falando para desligar os celulares e
fazendo uma gracinha, algo como apagar os ´Edsons Celularis´ ou coisa assim. E
de repente sai detrás da cortina o próprio Gerald Thomas. E no final, após os
aplausos, quem chamou a atenção de todos para a presença de Elza Soares foi
ele. Ou seja, o autor/diretor esteve o tempo todo presente na encenação. Não
sei se isso só foi possível nesse dia, ou se ele realmente acompanha as
apresentações durante toda a curta temporada. Mas achei isso muito legal, algo
condizente com o teatro ´de autor´ que presenciamos.
Posso novamente não ser capaz de entender muito do que estiver em cena, mas a experiência de assistir a uma peça do Gerald Thomas é realmente diferente e interessante.
´Entredentes´
Com Ney Latorraca, Edi Botelho e Maria de Lima
Texto e direção de Gerald Thomas
Sesc Consolação, SP, até 11/mai/14
Posso novamente não ser capaz de entender muito do que estiver em cena, mas a experiência de assistir a uma peça do Gerald Thomas é realmente diferente e interessante.
´Entredentes´
Com Ney Latorraca, Edi Botelho e Maria de Lima
Texto e direção de Gerald Thomas
Sesc Consolação, SP, até 11/mai/14