domingo, 27 de abril de 2014

Entredentes



Entredentes, no Teatro Anchieta – Sesc Consolação



O Teatro Anchieta é o mesmo de ´Ah, a Humanidade... ´ velhinho, mas confortável. Dessa vez fiquei em uma das últimas poltronas, mas mesmo assim tinha uma boa visão do palco. Quem estava ainda mais para o fundo era a Elza Soares, que inclusive foi homenageada ao final da peça.
Havia duas coisas que me despertaram o interesse nessa montagem: assistir ao trabalho do Ney Latorraca, que eu só tinha visto em  cena no  ´ O Mistério de Irma Vap´, acho que mais de quinze anos atrás, e também ver uma obra do Gerald Thomas, que eu nunca havia assistido. Sobre o Ney, sem dúvida é um grande ator, conhecidíssimo do público por suas atuações em novelas e minisséries. Já o Gerald Thomas é uma figura mais enigmática. Eu simpatizo com a ´persona´  pública dele, gosto do jeito como ele se expressa nas entrevistas, a visão de um cidadão do mundo, mas extremamente conectado ao Brasil. E sei que as peças dele não são fáceis...
E realmente, é difícil por exemplo dizer qual  o ´enredo´   da peça.  O cenário é um painel ao fundo, onde há uma projeção gigante de uma vagina em preto e branco.  De início temos os dois atores, Ney Latorraca e Edi Botelho, vestidos de astronautas,  e fazem uma coreografia como se estivessem em um lugar com baixa gravidade. Depois lançam confetes para cima, retiram os seus capacetes, e começa o diálogo entre os dois, cujos nomes dos personagens eram respectivamente ´Ney´  e  ´Didi´. O assunto? Sei lá, a relação entre os dois, as manias, as histórias em comum, quase como se fossem um casal.  Quase ia esquecendo: assim que tira o capacete, o Ney ( personagem ou ator?)  canta ´Chão de Estrelas´, de um jeito até muito bonito.
Depois ambos retiram as roupas de astronautas e ao figurino que estava por debaixo, que são roupas comuns,  são acrescentados um quipá ao Ney, e um keffiyeh ao Didi.  Para essa entrada dos objetos em cena dois contra-regras adentram ao palco, e tanto na entrada quanto na saída de cena eles vão executando uma certa coreografia. Isso se repete em todas as entradas deles, quando vão levar e retirar outros objetos de cena, como as vassouras que são utilizadas para retirar os confetes que estavam no chão, e mais tarde essas vassouras se tornam também espadas.
Mas como ia falando, quando os dois se caracterizam como árabe e judeu a projeção ao fundo é apagada, e aparece uma tela no centro do palco com um muro moderno, todo pixado. A  partir daí entendemos que estão em frente ao Muro das Lamentações,  pelas referências religiosas da conversa entre os dois. E aparecem alusões ao que me parece serem obsessões do diretor, pelo que já vi em entrevistas dele: o Holocausto, o atentado de 11 de setembro...  
Para mim é difícil estabelecer uma ordem cronológica de toda a encenação, mas se não me engano depois que o quipá e o keffiyeh  são retirados, a conversa entre os personagens masculinos passa a tratar de referências ao Brasil, e é aí que a atriz portuguesa  Maria de Lima ( personagem: Maria, é claro! )  entra em cena. Magra, cambaleante, de vestido vermelho, se não fosse pelo sotaque não seria possível dizer que é portuguesa, já que não tem o biótipo que associamos a eles. E ela entra com muita força em cena, falando muito sobre o Brasil, dizendo alguns elogios e algumas verdades inconvenientes.  O gestual dela é muito mais forte, muito mais agressivo do que dos outros atores.  Depois ela sai de cena, retornando no final da peça. Mas basicamente não há interação dela com os outros atores, mais é um monólogo dentro da peça, como se ela tecesse comentários sobre o que os outros disseram.

E acho que a palavra-chave desse espetáculo é ´comentários´.  O que a gente tem em cena é um grande texto com vários e vários comentários do autor, sobre a situação do Brasil, a situação global, questões sexuais, obsessões, críticas, Chico Xavier, Wittgenstein, a situação da Síria, da Ucrânia...   São quase três horas de espetáculo sem intervalo, e a partir do momento em que os capacetes de astronauta são retirados praticamente não há silêncio, mas sempre uma verborragia contínua. Acho que a verborragia só é quebrada por alguns momentos quando algumas palavras são repetidas, ´it´s amazing, it´s amazing, it´s amazing´....   Aliás, em alguns momentos parecia haver uma certa alienação do Ney, o que me lembrava o personagem da TV Pirata, o Barbosa.
Ao sair do teatro  fiquei pensando no sentido de tudo o que eu acabei de ver, e principalmente, de ouvir. Difícil estabelecer um julgamento sobre algo tão fora do habitual, mas que por isso mesmo, foi interessante de se assistir. O tempo todo eu estive ligado no que acontecia em cena, e tenho a impressão de que toda a plateia também. Aliás, sobre a plateia, de vez em quando aparecia um riso solto. Ou sou muito burro e não percebia do que aquela pessoa estava rindo, ou o tal estava rindo para dizer a si mesmo  ´como sou inteligente, percebo coisas nas entrelinhas que só eu vejo´....

Pra terminar, um comentário sobre o que aconteceu ainda antes do início da peça: ouvimos uma voz falando para desligar os celulares e fazendo uma gracinha, algo como apagar os ´Edsons Celularis´ ou coisa assim. E de repente sai detrás da cortina o próprio Gerald Thomas. E no final, após os aplausos, quem chamou a atenção de todos para a presença de Elza Soares foi ele. Ou seja, o autor/diretor esteve o tempo todo presente na encenação. Não sei se isso só foi possível nesse dia, ou se ele realmente acompanha as apresentações durante toda a curta temporada. Mas achei isso muito legal, algo condizente com o teatro ´de autor´ que presenciamos.

Posso novamente não ser capaz de entender muito do que estiver em cena, mas a experiência de assistir a uma peça do Gerald Thomas é realmente diferente e interessante. 



´Entredentes´
Com Ney Latorraca, Edi Botelho e Maria de Lima
Texto e direção de Gerald Thomas
Sesc Consolação, SP, até 11/mai/14

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