Mais uma montagem de Shakespeare, dessa vez no Centro Cultural São Paulo:
Primeira visita ao Centro Cultural São Paulo em muitos anos, e a primeira vez que assisto uma peça de teatro lá, na Sala Jardel Filho. O Centro Cultural é um tremendo projeto de arquitetura dos anos 70, realmente muito bom. Toma partido do grande desnível entre a Rua Vergueiro e a Av. 23 de Maio, tem espaços amplos, integrados, uma cobertura bastante escultórica, bons espaços de convivência. Mas também tem seus muitos problemas, típicos de obras públicas: infiltrações, falta de manutenção, falta de orientação.... por outro lado, é um dos raros lugares de convivência urbana de São Paulo. Lá a gente tem a sensação de que se não todas, várias ´tribos urbanas´ convivem harmoniosamente. Em pleno sábado à noite, ao mesmo tempo em que várias mesas da lanchonete estavam lotadas com grupos de estudo - aparentemente estudantes de nível secundário -, na entrada havia um grupo de ´street dance´ ensaiando seus passos acrobáticos, gente com violão... Bastante interessante de se ver
Lá dentro a sala está em bom estado de conservação, de modo geral. As poltronas são de couro, com o assento pendurado em uma trave de madeira que faz as vezes de encosto, e sustentadas também pelas laterais em madeira - assim, cada assento é um pequeno balanço, o que facilita permitir o acesso a outras pessoas. O estofado do assento é que poderia ser mais caprichado... quase três horas sentado em uma tábua não é fácil! Já a diferença de nível entre as fileiras é ótima, então a não ser que alguém vestido com um chapéu de guarda do Palácio de Buckingham sente à frente, ninguém terá problemas para enxergar o palco. O espaço entre as poltronas não é tão generoso para as pernas, por isso eu escolhi um assento na extremidade da fileira e pude esticar as pernas em direção ao corredor, já que os lugares não são marcados.
Os ingressos só são vendidos no próprio Centro Cultural São Paulo, e no mesmo dia do espetáculo, sendo que a bilheteria abre duas horas antes. Não sei porque causar esse incômodo, afinal ir até lá sem saber se vai haver ingressos disponíveis é sempre desconfortável. Em todo caso, cheguei logo que a bilheteria foi aberta, para não correr o risco de perder a viagem. Junto com os ingressos foram entregues os programas, que têm o formato de um jornal tablóide. Felizmente havia muito o que ler, e uma informação preciosa: a montagem faz parte do ´Projeto 39´, que pretende levar aos palcos todas as peças de Shakespeare. Se for possível, estarei em todas!
De início, o que vemos é um tablado redondo, gigante, que ocupa quase todo o palco e se projeta também para fora dele. Nas laterais e ao fundo, uma cortina preta, e pendurado no fundo do palco, um sino. A ação tem início com o badalar desse sino, que comemora o fim da Guerra dos Rosas ( duas famílias que lutaram pelo poder na Inglaterra medieval, e ambas tinham como símbolo rosas, brancas e vermelhas ). Quem venceu foram os York, e agora o líder Eduardo ( Heitor Goldlus ) é coroado rei da Inglaterra, com o título de Eduardo IV. Sua esposa é a rainha Elizabeth ( Mayara Magri, o nome mais conhecido do elenco ). Resumindo muito a história, que é bastante complexa, após a vitória do seu grupo, o duque de Gloucester, Ricardo ( Chico Carvalho ), põe em prática um plano de conseguir o poder, sem medir as consequências - logo de início, através de intrigas ele leva o irmão, Clearance ( André Corrêa ) à prisão, e depois à morte.
O drama impera em todo o texto, mas alguns momentos de ironia e pura desfaçatez são engraçados. Todos eles protagonizados pelo grande nome da montagem, Chico Carvalho. Ele faz o Ricardo III com muita expressividade, demonstrando todo o maquiavelismo do personagem, sua falta de escrúpulos, sua cobiça, mas também a sua fragilidade e solidão. É nítido o esforço físico dele, que praticamente não sai de cena o tempo todo. Aliás, a montagem se espalha pelo teatro, tomando partido dos dois corredores largos que dividem os blocos de assentos, e em inúmeros momentos os atores vem e vão através dos degraus dos corredores. Outra interpretação que achei marcante foi a da Rainha Margareth ( Renata Zhaneta ), que é ex-rainha mãe da Inglaterra, pois foi seu filho quem foi deposto com a chegada dos York ao poder. Ela é um verdadeiro agouro ambulante, distribuindo pragas a torto e a direito, e a interpretação mais caricata me pareceu bastante interessante. Mas se na minha opinião se destacam esses dois atores, não há ninguém que eu possa dizer que tenha ido mal, pelo contrário.
A tradução manteve a grande fluência de Shakespeare, com longas frases, mas utilizando uma linguagem moderna e absolutamente compreensível. Depois de terminada a peça é que me dei conta de que em nenhum momento algum ator cometeu alguma falha de dicção ou engasgou com o texto, coisa nada fácil em uma peça de mais de duas horas e meia de duração ( com um pequeno intervalo ). Sinal de que a equipe toda está redondinha, funcionando perfeitamente, com todos muito seguros em seus papéis.
Ia esquecendo de comentar sobre os figurinos: não são representações de época, muito pelo contrário. As mulheres utilizam vestidos que me parecem remeter à Era Vitoriana, enquanto os homens utilizam calças jeans pretas e coturnos em sua maioria, com sobretudos ou casacos de lã sobre as camisas. E enquanto quase todas as mulheres representam os mesmos personagens durante toda a peça, vários dos atores homens interpretam dois ou até três papéis, sem alterar o figurino, com a possível exceção do Heitor Goldflus.
A temporada já está acabando, mas vale a pena correr até o Centro Cultural São Paulo para assistir essa peça. Desde já, posso dizer que entra nas melhores de 2014.
Ricardo III
Com Chico Carvalho, Mayara Magri, André Corrêa, Heitor Goldflus, Renata Zhaneta
Texto de William Shakespeare, tradução e adaptação de Jorge Louraço
Direção de Marcelo Lazzaratto
Centro Cultural São Paulo, até 11/mai/14
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