Essa peça fez uma longa temporada em 2012 no Tucarena, mas acabei perdendo. O texto é do Nelson Rodrigues, cujo centenário foi comemorado no ano passado, o que me deu oportunidade de assistir a várias peças dele, então era mais um motivo para assistir a ´O Grande Viúvo´, mas principalmente, eu estava curioso em ´ver´ o tal Teatro Cego, onde não se enxerga nada...
Ainda não conhecia o Sesc Ipiranga, já havia passado em frente, na Rua Bom Pastor, mas nunca havia entrado. Como cheguei com um pouco de antecedência, acabei dando uma voltinha por lá, fui até a lanchonete e passei por uma sala de exposições, onde havia uma mostra dedicada ao Mazzaropi. O edifício é mais antigo do que os outros Sescs que costumo frequentar, não sei bem mas deve ter uns 30 anos. A manutenção está em dia, ´padrão Sesc´, mas claramente é de uma época em que as unidades eram construídas com projetos mais simples. No teatro, a mesma coisa, a entrada é um tanto acanhada, não há um foyer, o espaço de espera é o hall de distribuição geral do Sesc, e ultrapassando as portas do teatro em caixilhos de alumínio anodizado, há simplesmente um corredor que leva às laterais da sala de espetáculos. O que interessa mesmo, é claro, são as condições do teatro, e no pouco tempo em que ficamos sentados nas poltronas, pareceu tudo ok.
Foi por pouco tempo que ficamos nas poltronas por um motivo inusitado: o público é chamado para subir ao palco. Ontem o teatro não chegou a ficar lotado, e claro, por causa da dinâmica da peça, não havia lugares marcados. Quando chegou o horário de início da peça houve uma pequena introdução, primeiro de um integrante do staff contou que alguns dos atores em cena são realmente cegos, e trouxe ao palco uma atriz cega chamada Paula. Ela explicou que seríamos todos conduzidos ao palco ( há uma rampa ligando o palco ao corredor junto à ribalta ) em grupos de quatro pessoas. Que então deveríamos nos sentar, e que seríamos avisados de em qual setor estávamos, pois caso alguém passasse mal deveria levantar uma mão e dizer em que lugar estava, e alguém da produção iria ´resgatar´ a pessoa. Mas que só deveríamos fazer isso em último caso, pois isso quebraria a magia da experiência. E contou também que a peça era no escuro mas não era de terror, e que não precisávamos ficar preocupados, não haveria nenhum contato físico com a platéia, nós apenas sentiríamos o espetáculo com todos os nossos outros sentidos, pois a visão estaria anulada pela escuridão.
Fomos então conduzidos pelo staff para detrás da cortina de cena. Lá já reinava a escuridão total, éramos guiados em fila indiana, cada um com a mão no ombro da pessoa em frente, e o guia levava uma lanterninha muito fraca apontada para o chão, apenas para não tropeçar. Fomos dos primeiros a subir ao palco, então ficamos no setor 1. O que deu para perceber é que o nosso setor era composto por 3 fileiras de 4 cadeiras de plástico cada, sendo que a fileira em que eu estava ficava de frente para as outras duas. Aguardamos todos os ´expectadores*´ tomarem seus lugares, e a peça começou.
Após uma introdução de música instrumental, ouvimos rezas, Aves-Marias, e choros. Logo a gente se dá conta que estamos em um velório, e a morta é Dalila, esposa de Jair, que está inconsolável. Daí a instantes, quando aconteceu o enterro, os atores ficaram bem atrás da fileira onde estava sentado e então dava para sentir a trepidação do palco a cada vez que a ´pá´ estava escavando a terra. A sonoplastia é incrível, você realmente ouve o baque surdo do caixão batendo em alguma coisa, a terra sendo jogada, as flores...
Depois de mais um trecho instrumental, que era usado para marcar as mudanças de cena, ouve-se a família do viúvo, chamado Jair, preocupada com a saúde dele. A mãe, com sotaque que me pareceu ser do leste europeu, o pai, a filha e o genro, que tem todo o jeito de malandro. O pai diz que a viuvez se cura em 48 horas, mas ao ouvir isso Jair entra no ambiente e anuncia que a vida dele acabou, e que ele só não vai se matar naquele dia mesmo porque pretende construir um mausoléu para ele e Dalila, e que inclusive já tratou da compra do terreno para isso.
Novo corte de cena, o pai chega em casa para o café da manhã com pão quente, é feito um café fresco, e sentimos cheiro de pão e café. Há uma outra conversa da família, ainda sobre o sofrimento de Jair, especulações se ele é capaz de se suicidar ou não. Paralelamente, ficamos sabendo que o genro é um vagabundo, sem emprego, que vive às custas da família da mulher. Coisa que aliás é típica dos personagens do Nelson Rodrigues, e a essa hora eu já estava vendo aquelas casas de subúrbio do Rio de Janeiro nos anos 50. Ainda durante o café da manhã, que Jair recusa a compartilhar, ele anuncia que como todos os dias vai ´visitar´ a falecida no cemitério. A mãe dele o repreende por não se alimentar e por sair na chuva fria, diz que o corpo dele não vai aguentar e que vai ficar doente. Em seguida ouvimos Jair no cemitério, conversando com Dalila em seu túmulo, e como está garoando, sentimos que está garoando na platéia também.
Outra cena, de volta à casa. Era o momento do almoço, então sentimos o cheiro de carne assada - mas dessa vez acho que o ´tempero´ não estava bom, achei um tanto enjoativo... E vamos acompanhando o desenrolar da história pelas falas dos personagens, e essa ´radionovela´ é acrescida de outras sensações, principalmente através dos ruídos da sonoplastia e dos cheiros.
Mas retomando o enredo, nesse momento a família discute inclusive se era o caso de internar o Jair, estão preocupados com a possibilidade de suicídio dele, pois ao contrário do que o pai previra de início o tempo não está trazendo melhora alguma ao seu filho, muito pelo contrário.
A mãe então revela que chamou um primo para o jantar, e esse primo, por ser extremamente religioso, ter sido coroinha por anos e anos, poderia ajudar a ´curar´ o Jair, já que o ´problema dele é espiritual´. Não pude deixar de notar que se fosse hoje em dia, certamente haveria referências a psicólogos, depressão, drogas para controlar desvios de comportamento.... Mas isso não fazia parte do universo de Nelson Rodrigues. A idéia da mãe é rechaçada pelo resto da família, o pai acredita que o tal primo é um fracassado que nem conseguiu passar de coroinha a padre, e todos os demais o acham extremamente chato. Mas a mãe mantém a esperança de que isso ajude seu filho.
Novo corte musical, nova cena, e Jair é flagrado usando uma calcinha da falecida como lenço. Ele sai batendo a porta, e a família volta a conversar sobre o futuro de Jair. Então o genro, o malandro que vive às custas da família, aparece com uma idéia: o problema de Jair é o amor que continua sentindo pela falecida. Então o jeito de curar o viúvo é acabar com esse amor. Todos em princípio acham a idéia absurda, pois não há meios de conseguir isso. O genro diz que mulher alguma está livre de ser vítima de ´uma boa calúnia´, e com uma morta é ainda mais fácil, pois ela não poderá negar. A idéia é convencer Jair de que Dalila tinha um amante, e com isso destruir o amor que ele ainda sente por ela. Apesar do espanto, mesmo porque Dalila teria sido ´honestíssima´ em vida, o pai começa a achar a idéia interessante.
Essa conversa em família ocorre antes do jantar onde o tal primo, o ex-coroinha, está sendo aguardado. Ao final da conversa, sentimos o cheiro da sopa que estava sendo preparada. A conversa é interrompida pela chegada de Jair, que quer saber o que estava sendo dito. Em princípio todos tentam desviar o assunto, mas o pai acaba cometendo a ´inconfidência´ de dizer que Dalila tinha um amante. Jair a princípio refuta essa possibilidade e mostra que está armado com um revólver, que aponta para a própria cabeça e ameaça atirar se não disserem o nome do tal possível amante. A mãe entra em desespero, todos falam coisas desconexas, e nisso, chega o tal primo coroinha. Para que o filho não se suicide, a mãe indica que o primo é que foi o amante de Dalila.
O Jair então vai armado em direção ao primo, que recua apavorado, pois não está sabendo o que ocorre ali, e claro, pensa que será morto. Mas aí vem o grande fecho nelsonrodrigueano, com um final que não era o que se poderia esperar, e que eu não vou contar aqui. Só o que posso dizer é que absolutamente pertinente com o universo do autor...
E então, termina o espetáculo. Um dos atores acende uma vela, e vai apresentando os outros, um a um. Conforme tem seu nome chamado, cada ator ( agora iluminado pela vela ) repete uma frase de seu personagem, de modo que podemos saber quem interpretou a mãe, o pai, a filha, o cunhado, e claro, Jair. A vela é novamente apagada, mas as luzes do palco não são acesas, apenas as luzes da platéia, que vazam pelas frestas das laterais da cortina. Daí é que pude perceber melhor o espaço onde estávamos: havia dois corredores ortogonais que se cruzavam no centro do palco, com mais ou menos um metro e meio de largura. Nesses corredores, bem no eixo, há cabos de aço a mais ou menos dois metros de altura, e obviamente são esses cabos de aço que guiam os atores na escuridão total.
Eu não sei relacionar os nomes dos atores com os dos personagens, e o programa fornecido não traz essa informação. Mas só o ´pai´ que eu achei que destoava um pouco, tinha a voz muito empostada, que não condizia com o restante das interpretações, e por isso me parecia um tanto falsa. De qualquer maneira, isso não chega a comprometer o prazer de acompanhar essa peça, a gente realmente ´entra´ no enredo, e vai acompanhando tudo como se realmente estivesse vendo. Eu preferi ficar de olhos abertos, mesmo não enxergando absolutamente nada. Quando fechei os olhos, me pareceu que desconcentrava um pouco. Então, acabava olhando naturalmente para cima, como se estivesse evitando ´encarar´ o expectador que estava na minha frente ( nossas fileiras eram voltadas uma para a outra ), e ia virando a cabeça de modo a direcionar os ouvidos para onde vinha o som. Foi uma experiência interessante, ´assistir´ uma peça sem ver nada.
Dessa vez foram apenas duas apresentações no Sesc Ipiranga, mas sei que vão haver mais, em outros espaços. Vale a pena conferir.
* Agora parei para pensar no assunto: expectadores, platéia, assistir à peça, ver o espetáculo.... tomamos a visão como o sentido primordial, e obviamente, isso se reflete na linguagem. Mas para dar conta de fazer esse texto, essas palavras não são as mais adequadas, apesar de ser difícil escapar delas.
O Grande Viúvo
Com Bruno Righi, Giovana Maira, Manoel Lima, Paulo Palado, Sara Bentes e Sérgio Sá
Direção de Paulo Palado
Texto de Nelson Rodrigues
Sesc Ipiranga, até 01/mar/13
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