Pré-estréia da temporada popular de ´Deus da Carnificina - uma comédia sem juízo´, no Teatro Sérgio Cardoso:
Essa peça já havia sido encenada no ano passado em São Paulo, mas naquela ocasião no Teatro Vivo, só que eu acabei perdendo. Então, foi muita sorte que voltasse em cartaz na cidade.
O Teatro Sérgio Cardoso é um espaço do governo estadual e foi reformado há pouco tempo, portanto está em boas condições. Fica na parte baixa do Bexiga, na Rua Rui Barbosa, já pertinho da Ligação Leste-Oeste. Para chegar lá é fácil, mas na hora de estacionar tem sempre os ´guardadores´ de carro, que obviamente só ficam ali no horário da chegada. Quando saí do teatro não havia mais nenhum.... então, até para não incentivar esse tipo de achaque, mais uma vez eu preferi guardar o carro num estacionamento ali perto, na mesma calçada - é mais tranquilo.
Lá dentro o foyer estava fervendo, como era pré-estréia havia muitos atores para assistir a peça. Acho que por essa razão que a encenação começou com um pouco de atraso, o pessoal ficava ali tomando espumante, conversando, e nada de ir para as poltronas. Mesmo depois do início da peça ainda havia gente chegando à platéia, uma falta de respeito total. Lá dentro a sala de espetáculos é relativamente confortável, há uma boa diferença de altura entre as fileiras, e a distância entre as poltronas também é adequada a alguém do meu tamanho. O único reparo é que as poltronas, em tecido preto, não são lá muito acolchoadas.... se a espuma do assento fosse mais generosa, ficaria bem melhor.
A peça é uma comédia, mas não uma comédia ´rasgada´. O riso vem das ironias, das frases mordazes que os personagem desferem uns contra os outros, e não de piadas. Toda a encenação se desenrola em ´tempo real´, no mesmo espaço, que é a sala de estar de um casal. O filho desse casal, de onze anos, foi agredido por um colega da mesma idade, e agora os pais e mães dos dois garotos estão reunidos para tratar do assunto.
Em princípio, todos são cortezes uns com os outros, porém a personagem Verônica ( Deborah Evelyn ) lê um texto onde afirma que seu filho foi agredido pelo outro menino que estava ´armado´ com um pedaço de pau. O pai do menino agressor, Alain ( Paulo Betti ) não concorda com o termo ´armado´, que é muito forte para definir a atitude de uma criança de onze anos. Nesse primeiro momento, o pai do garoto agredido ( Michel / Orã Figueiredo ) contemporiza, e a palavra ´armado´ é substituída por ´munido´, e a mãe do menino agressor, Annette ( Julia Lemmertz ), em atitude muito submissa, agredece pela condescendência do outro casal.
Mas Alain não corresponde exatamente à espectativa da esposa, e assim se criam os primeiros conflitos com sua mulher, instigados pela mãe do garoto agredido. Em princípio, Alain nem achava que deveria estar havendo aquela reunião, pois o que aconteceu foi apenas um problema entre crianças e que deveria ficar restrito às crianças. Mas isso irrita muito à mãe do menino que perdeu dois dentes, e que segundo ela, está ´desfigurado´. O termo ´desfigurado´ é novamente reduzido em sua importância por Michel, que parece ser o grande apaziguador da história. Mas conforme a conversa vai se desenvolvendo, os pontos de vista de cada um deles fazem com que as ´alianças´ entre eles mudem, e se em um momento as mulheres têm o mesmo ponto de vista, fazendo assim uma aliança tácita entre elas, no momento seguinte essa aliança é desfeita e a Annette é que pode ser a aliada do Michel - ou não.
Conforme a conversa vai se desenvolvendo, outros assuntos são apresentados: Alain, o advogado, frequentemente atende ao telefone celular para tratar de um caso onde uma empresa farmacêutica continuou a vender um medicamento potencialmente perigoso, apesar de ciente disso. Verônica mostra um interesse pela situação na África negra, mas que na verdade é só um modo de se mostrar uma pessoa de uma civilização ´superior´ àquela, um humanismo que na verdade é só um modo de esconder sua personalidade mesquinha, que se mostra tolerante desde que os outros aceitem o seu ponto de vista como o correto. Annette é uma conselheira em gestão de patrimônio, uma mulher com carreira profissional, mas aparentemente totalmente submissa ao marido. E Michel é um vendedor de quinquilharias, sem a menor pretensão de ser algo além disso, sem ambição, sem cultura. Isso tudo vai transparecendo a partir de conversas sobre amenidades, em que eles se mostram interessados uns na vida dos outros somente para quebrar um possível silêncio constrangedor.
E esse é o tom da conversa, cada um deles tentando fazer com que seus argumentos sejam reconhecidos como ´vencedores´ pelos outros, senão no caso que gerou o encontro, mas em outros assuntos que vão surgindo. E isso tudo faz com que as relações sejam bastante complicadas, porque ao longo da discussão as situações de 'alianças / inimigos´ vão mudando a todo momento. E pode-se dizer que com o desenrolar da peça, as ´máscaras´ vão caindo, e as personalidades se revelando.
Com certeza não estou conseguindo transmitir todas as várias camadas que existem no texto. Além do que já me referi, também há outras possíveis leituras da peça, em seus vários sub-textos: ela também trata da sociedade de aparências em que vivemos, do verdadeiro interesse ( ou não ) no bem-estar dos filhos, ( o filho, produto do seu ´trabalho´, pode ser de alguma maneira não tão bom quanto você esperava, e que portanto, o fracasso dele em atingir o que se espera é também o fracasso dos pais? ), da verdadeira natureza das pessoas, que submetidas a stress deixam seu ´verniz´ de educação de lado e mostram seu lado mais primitivo, mesquinho... Enfim, o texto permite várias leituras... Aliás, ainda preciso ler o texto mesmo da peça, agora que o tenho há disposição - já vou contar como consegui.
Todos os quatro atores são craques, e o menos conhecido deles, Orã Figueiredo, é quem tem as falas mais leves, mais engraçadas, seu personagem é o menos ´maquiavélico´, o menos cínico entre todos. Mas quem eu acredito que tenha se destacado mais foi a Julia Lemmertz, que vai se transformando durante a peça, de uma mulher submissa a uma mulher revoltada, que com o auxílio de um pouco de bebida alcoólica vai se liberando. Mesmo tendo sentado longe, em uma das últimas fileiras, dava para perceber a energia com que ela estava no palco. A sua personagem foi a que teve uma transformação maior no decorrer da peça, e essa transformação se expressava fisicamente no gestual da atriz, que começa como uma mulher contida e acaba arrancando o celular das mãos do marido e jogando em um vaso com água...
Enfim, a peça é altamente recomendável. É um prazer ver quatro ótimos atores em cena, num texto instigante, bem montado, são quase duas horas de espetáculo que passam voando. Se tiver oportunidade com certeza ainda vou assistir mais uma vez, tem muita coisa a se extrair dessa peça, muitos detalhes, muitas nuances, e eu não consegui apreender tudo que gostaria em uma única vez.
Nos agradecimentos ao final, o Paulo Betti oferece a todos que entrem em contato através de um email, e foi assim que consegui o texto da peça. Ainda não tive tempo de ler, mas está comigo. E depois, no burburinho da saída, é que vi que estava lá também a Ellen Roche. Não sou de ficar tietando ninguém, mas é impossível não reparar naquela mulher, foi a primeira vez na minha vida que tomei a iniciativa de ir conversar com alguém famoso - além do mais, ela é super-simpática.
O Deus da Carnificina
Com Deborah Evelyn, Julia Lemmertz, Orã Figueiredo e Paulo Betti
Direção de Emílio de Mello
Texto de Yasmina Reza
Teatro Sérgio Cardoso, SP, até 05/mai/13
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