A noite estava complicada, muita chuva em São Paulo. Eu ainda não conhecia o Teatro do Núcleo Experimental, na R. Barra Funda ( a mesma do Theatro São Pedro ), e acabei passando pelo Núcleo direto, tive que dar a volta no quarteirão e passar novamente na rua, bem devagar, para achar o teatro. De noite, com chuva, não foi à toa que não notei a fachada pequenininha... Perto do teatro, aliás, não dava para estacionar, a sarjeta havia virado um rio, fui mais pra frente e deixei o carro no quarteirão seguinte, onde há uma elevação. Assim fiquei tranquilo de que meu carro não sairia boiando enquanto eu assistia à peça.
O Núcleo Experimental tem como ´foyer´ um café pequeno, a bilheteria é um móvel de canto, que estava ao fundo junto ao acesso para o banheiros - e eu demorei um instante a perceber onde eram vendidos os ingressos. Daí já fui imaginando que o espetáculo seria do tipo ´alternativo´, simples, talvez com muita criatividade pra superar a falta de recursos, mas... não foi nada disso.
Comprados os ingressos, de um tempo a porta dupla nos fundos do foyer simplesmente se abriu, e a mesma moça que era estava na ´bilheteria´ passou a recolher os tíquetes. Não houve primeiro sinal, segundo, terceiro, nada. Aliás, não houve nem mesmo os avisos obrigatórios orientando onde ficam as saídas em caso de emergência, aviso de ´proibido fumar´ , de ´desligue o celular´...
O que havia ao entrar uma pequena arquibancada de 3 degraus, com almofadinhas marcando cada assento.O cenário era de uma casa inglesa, com lareira, poltrona de couro, tapetes, e ao fundo uma parede revestida com lambri e a parte superior em tecido, com duas grandes janelas. Aliás, uma cenografia muito bonita. A Chris Couto já estava lá sentada na poltrona, lendo um livro em silêncio. Assim que todos da platéia se acomodaram, umas 30 pessoas, ela começou a falar.
A personagem se apresentou e falou de seu interesse por Cabul. O livro que ela tinha em mãos seria um antigo guia de viagem ao Afeganistão, e ela vai ´lendo´ o guia e fazendo comentários sobre seus interesses, sobre sua vida... A fala dela é propositadamente rebuscada, principalmente nas intervenções da própria personagem, que se desculpa pelo seu modo peculiar de se expressar. Os primeiros minutos são de um monólogo, até que ela conta sobre a sua visita a uma pequena loja de um paquistanês onde comprou chapéus para uma festa, e o personagem dono da tal loja é introduzido em cena. Há uma movimentação no cenário, um dos lados da parede é movido, e dessa passagem vem o afegão.
Depois de mais alguns instantes vem a primeira surpresa: o afegão se dirige à platéia, e com um gesto convida a todos para ir pela tal passagem aberta no cenário. O que há do outro lado é o Afeganistão, a peça passa a se desenrolar num espaço bem maior, relativamente estreito e comprido. O público é dividido em duas partes, que se sentam nas laterais do espaço cênico. Ao atravessarmos para o Afeganistão, somos ´recepcionados´ por um talibã com uma AK47 nas mãos, há fogo num pequeno fogareiro, incenso... tudo faz com que a atmosfera seja totalmente diferente.
A personagem principal, Sra. Ceiling, vivida pela Chris Couto, também está no Afeganistão, e agora além de narrar a história do país, passa a falar também sobre sua experiência em Cabul. Se eu entrei no Núclo achando que poderia ver uma peça simples, aí já estava totalmente convencido de que estava enganado. Além da grande sacada de fazer com que nós nos deslocássemos fisicamente de um lugar a outro, fazendo o percurso Londres - Afeganistão, os figurinos passaram a chamar muita atenção.
A verdadeira aula sobre o Afeganistão dada pela Sra. Ceiling continua, e as cenas vão se alternando com a introdução do marido e a filha dela. Os dois também estão em Cabul, e estão à sua procura, pois a Sra. Ceiling desapareceu e possivelmente está morta. Tem muita coisa sendo dita sobre Cabul, sobre as questões familiares dos personagens, sobre a relação Oriente / Ocidente, sobre o Islã... nem que eu quisesse teria condições de relatar isso aqui. Mas vale registrar que há suspense, mistério, muito sobre a história do Afeganistão, um certo romance, drama, e até um pouco de erotismo. As surpresas continuam, e num determinado momento é servido chá para a platéia. Eu estava tão entretido com o espetáculo que só notei atriz que representa a ´Priscilla Ceiling´ ( filha da Sra. Ceiling ) me oferecendo o chá quando ela já estava bem na minha frente ( eu estava na primeira fileira ). Dali a pouco um personagem afegão serviu fatias de um pão ( que só pode ser receita afegã, claro ), bem macio.Só quando a peça terminou é que me dei conta de que foram duas horas e meia de espetáculo, bastante intenso.
´No Coração do Mundo´ não tem uma estrela, alguém que se destaque. A Chris Couto sem dúvida é o rosto mais conhecido por suas aparições na tv, mas o que vale é o conjunto, a encenação toda. Tudo é muito bem encaixado, muito bem pensado. A cenografia que eu descrevi do apartamento em Londres é depois substiuída no Afeganistão por um piso revestido com uma lona velha, remendada, com duas camas-patente configurando um quarto simples de hotel, e as ruas determinadas por paredes descascadas e pixadas. A iluminação em alguns momento se faz somente com lampiões a querosene. Os figurinos dos afegãos são muito interessantes, inclusive quando o ´turbante´ que se enrola em torno do pequeno chapéu que eles usam se transforma em um xale que cobre o peito, e depois a mesma peça é usada como um tapete no momento da oração. Aliás, o momento da oração é também muito marcante, o som que os atores emitem parece que não sai diretamente deles, mas que vem de todo lado e preenche o espaço. E por falar em canto, na parte final da peça aparece uma mulher afegã ( Mahala ), rezando, ou cantando, ou rezando/cantando... em todo caso, é muito bonito.
Vou me contradizer um pouco em relação ao parágrafo anterior, porque notei que não fiz referência ao ´poeta´, o personagem do ator Eric Lenate, que é muito importante na trama, e que também se destaca na interpretação, pois entre os afegãos é o personagem mais importante e também com mais nuances. E a mulher afegã, a Mahala ( Nábia Vilela ), apesar de entrar em cena somente no final da peça, dá um show.
Quando no final os personagens londrinos retornam à Inglaterra, nós também nos deslocamos mais uma vez, voltando ao cenário onde a peça teve início. O final parece que vai ser um monólogo novamente, mas é interrompido pela chegada da Priscilla Ceiling. Depois de tanto sofrimento, de tanta tristeza, as duas mulheres que estão na cena final parecem terminar a peça com um pouco de paz. E a gente termina com a certeza de que acabamos de ver um dos grandes espetáculos do ano, uma grata surpresa escondida num pequeno teatro da Barra Funda.
Tem mais duas coisinhas que eu queria registrar aqui: ainda bem que a maior parte da peça se desenrola no Afeganistão, porque se tivesse passado duas horas e meia sentado na almofadinha da arquibancada, sem encosto... talvez a minha opinião sobre a montagem fosse diferente. E nessa noite, mesmo não havendo avisos para que as pessoas desligassem os celulares, não houve nenhum ´incidente´ desse tipo. Mas em compensação, tinha um chato na platéia que fazia questão de se expressar a cada frase da Chris Couto. Sei lá se o cara é parente ou fã, mas de toda maneira, era chato. Ria por nada, bem alto, nas primeiras cenas passadas em Londres, quando só havia ela em cena, e depois nas intervenções dela em Cabul. Nada a ver, um sem-noção total, a mulher falando das tragédias da vida no Afeganistão e ele rindo alto...
E dessa vez também havia um outro ator na platéia, o Zécarlos Machado, que atualmente está no seriado da GNT ´Sessão de Terapia´.
No Coração do Mundo
Com Chris Couto, Tony Giusti, Renata Calmon, Herbert Bianchi, Nábia Vilela e outros
Direção de Zé Henrique de Paula
Escrita por Tony Kushner
Teatro do Núcleo Experimental, até 17/fev/13
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não sei se alguém vai comentar aqui. Mas se você resolver fazer isso, por favor, seja educado. Critique, reclame, elogie, mas sempre com educação.
E se quiser fazer propaganda, aqui não é o lugar.